Corria
o Ano da Graça de mil oitocentos e cinquenta e quatro.
Estávamos
em Janeiro. O frio e o vento eram cortantes.
Maria,
a Rodeira, tinha-se deitado fazia tempo, quando foi despertada pelo latir dos
cães da vizinhança.
Como
estes não deixassem de se fazer ouvir, e achando estranho tão desusado alarido,
resolveu levantar-se e vir espreitar pelo postigo da sua acanhada cozinha.
Colocou
o xaile de lã sobre as costas, e foi com algum receio que perscrutou a noite de
breu.
Cruzes
credo! Àquelas horas não podia ser cousa boa…
Isto
de se viver junto de uma encruzilhada só podia trazer maus encontros…e se bem
calhasse poderia tratar-se de algum lobisomem, ou alguma alma penada.
Com
o coração a bater acelerado tentou escutar e olhar com atenção. Foi então que,
juntamente com o latir dos cães, percebeu um outro som, que sem sombra de dúvidas era o choro de uma criança recém-nascida.
Ficou
admirada, mas principalmente revoltada perante o facto de numa noite tão fria e
de grande ventania, alguém ter coragem de vir deixar uma criança na Roda dos Expostos.
Percebendo assim do que se tratava, saiu
porta fora o mais depressa que pôde, e chegada à Roda, deparou-se com um bebé
num cesto de vime. Dentro deste estavam inúmeras peças de enxoval, qualquer uma
delas dignas de gente de teres e haveres, e o mais significativo de tudo; um
singelo papel aonde estavam escritas algumas palavras. No entanto, e porquanto fosse analfabeta, guardou o papel consigo, e trouxe a criança para dentro de casa.
Já
dentro da sua cozinha, tirou o bebé do cesto e verificou que se tratava de uma
menina, a qual não teria mais do que três dias de nascida.
No
manhã seguinte levou-a à presença do Sr. Prior para que fosse baptizada o
quanto antes. E ao Sr. Prior entregou o papel que a acompanhava. Em seguida a
menina foi entregue aos cuidados de uma ama-de-leite.
Esta
menina era minha trisavó paterna, e o papel que a acompanhava rezava assim:
“ A
esta menina há-de ser dado o nome de Adelaide”.
E
Adelaide ficou, tendo-lhe sido acrescentado “de Jesus”.
Adelaide
de Jesus, uma menina a quem roubaram a família em criança, e uma herança em
adulta.
Mas
essa é outra história a que voltarei mais tarde.